Diferenças e convergências em família

 

Marcelo Aguiar



Existe uma idéia romântica e idealizada de que onde existe amor não há desavenças. Basta pensar na tradicional conclusão dos contos de fadas – “e viveram felizes para sempre” – a qual sugere que, unidos pelo amor, casais ou famílias desconhecem aborrecimentos. Este modo de pensar pode se transformar num sério problema. Afinal, quando as divergências vierem (e, acredite, elas virão!), seremos tentados a pensar que o amor acabou. A verdade é que o amor surge do encontro das diferenças, e que as diferenças, muitas vezes, causam desavenças. Nosso desafio não consiste em eliminar as desavenças, mas em trabalhar para que elas se transformem em convergências.


ALGUNS EXEMPLOS BÍBLICOS


Folheando as páginas das Escrituras, percebemos que dificuldades de relacionamento estiveram presentes na vida de indivíduos profundamente espirituais. Moisés, Arão e Miriã viveram um grave conflito (Nm 12.1,2). José pensou em abandonar Maria ao saber que ela estava grávida (Mt 1.18,19). E Paulo e Barnabé se separaram após um sério desentendimento (At 15.36-40). Essas pessoas não eram carnais. Pelo contrário: eram homens e mulheres de Deus. Entretanto, tinham as suas discordâncias, e experimentaram alguns desacordos. O mesmo acontecerá conosco em nossos relacionamentos.

O que é admirável é que as mesmas pessoas que viveram divergências conseguiram, pela força do amor, superá-las. A pedido de Arão, Moisés orou por Miriã, dizendo: “Ó Deus, rogo-te que a cures” (Nm 12.13). José recebeu uma visão e, despertado do sono, “fez como lhe ordenara o anjo do Senhor e recebeu sua mulher” (Mt 1.24). E Paulo, que havia deixado Barnabé por não aceitar Marcos em sua equipe missionária, escreveu mais tarde: “Toma contigo Marcos e traze-o, pois me é útil para o ministério” (2 Tm 4.11). O que esses personagens bíblicos tiveram em comum foi a disposição de investir no relacionamento – mesmo que isso significasse pedir desculpas, perdoar ofensas e rever decisões.

Vivemos numa época em que as relações, assim como os objetos, tendem a se tornar descartáveis. As pessoas não querem investir umas nas outras. Não desejam pagar o preço de uma reconciliação, tampouco buscar maneiras de superar suas divergências. Elas simplesmente rompem. Afastam-se. Trancam o coração. Vem daí o alto número de relacionamentos desfeitos, e a grande quantidade de “ex-maridos”, “ex-mulheres”, “ex-amigos” e “ex-membros de igrejas”. Precisamos aprender com o exemplo dos personagens bíblicos. Temos de entender que as superações são possíveis.


QUANDO AS DIFERENÇAS SE TRANSFORMAM EM DESAVENÇAS


Por que as diferenças, muitas vezes, originam desavenças? Há um ditado que diz que “os opostos se atraem”. Existe grande dose de verdade nessa afirmação, pois somos levados a admirar pessoas que são boas naquilo em que nós mesmos deixamos a desejar. É por isso que, frequentemente, vemos homens calados se casando com mulheres comunicativas, ou jovens tímidos buscando a amizade de outros mais expansivos. Entretanto, as mesmas características de uma pessoa que, a princípio, nos encantam, podem, com o passar do tempo, deixar-nos exasperados.

Imagine, por exemplo, uma mulher que tenha se casado com um homem de temperamento retraído. Ela pode, a princípio, ter sido conquistada pela segurança e paz que o seu jeito de ser lhe proporciona. Ao longo dos anos, porém, esse mesmo jeito de ser poderá deixá-la aborrecida (quando, por exemplo, ele se recusar a acompanhá-la numa festa). Essa é uma razão pela qual muitas diferenças acabam em desavenças. A outra é o nosso próprio narcisismo. Narciso foi um personagem da mitologia grega que se apaixonou pelo próprio reflexo. Da mesma forma, temos a tendência de achar que as nossas ideias são as melhores, que as nossas vontades são as mais legítimas, e que as nossas posições é que estão certas.


SUPERANDO AS DESAVENÇAS


Devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para evitar que as diferenças se transformem em desavenças. Para isso, será importante cultivarmos um espírito humilde, lembrando-nos de que ninguém é o dono da verdade. Igualmente válido será desenvolvermos uma postura generosa, relevando as falhas de quem está ao nosso lado. A capacidade de ceder em alguns momentos, abrindo mão daquilo que não é essencial, também contará pontos. Mas... o que fazer quando tudo isso não for suficiente? Qual deve ser a nossa atitude como cristãos se a desavença já houver se instalado? Como podemos transformar em convergências as divergências do cotidiano?

Em primeiro lugar, devemos evitar julgamentos. Quando alguém faz algo que nos desagrada, o que mais nos magoa não é o ato em si, mas a motivação que lhe atribuímos. Somos levados a pensar que a pessoa não nos ama ou não se importa conosco. Explicamos o seu comportamento como uma demonstração de má vontade ou egoísmo. Mas a verdade é que o outro é diferente. Ele pensa, sente e age de um modo diverso. Há um ditado que diz que “o bom juiz julga os outros por si mesmo”. Esse ditado está totalmente errado! Não podemos interpretar o comportamento dos outros a partir das nossas próprias motivações, pelo simples fato de que cada indivíduo é único. É preciso relembrar as palavras do Mestre: “Não julgueis, para que não sejais julgados” (Mt 7.1).

Além disso, devemos buscar o diálogo. “É conversando que a gente se entende” – esse, sim, é um bom ditado! Porém, existem maneiras produtivas e improdutivas de conversar. A maneira improdutiva se chama discussão. Minha definição pessoal de discussão é a seguinte: “Uma conversa onde todos falam e ninguém ouve”. A única forma de vencer uma discussão é não entrar nela, pois quando discutimos despertamos na outra pessoa fortes resistências emocionais. Já a maneira produtiva de conversar se chama diálogo. A característica principal do diálogo é o ouvir. Uma vez que o outro é diferente de mim, só conseguirei entendê-lo se me dispuser a escutar. Por isso a Bíblia diz: “Todo homem, pois, seja pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar” (Tg 1.19).

Em terceiro lugar, devemos realizar ofertas. Substituir o paradigma do “pedir” pelo do “oferecer”. Cada ser humano possui, dentro de si, um “tanque emocional”. Quando pedimos a alguém que modifique o seu comportamento, o que estamos solicitando é, na verdade, que ele nos abasteça emocionalmente. Porém, muitas vezes o tanque afetivo do outro também está vazio, e por isso ele não consegue atender a nossa reivindicação. Se você se dispuser a abastecê-lo emocionalmente, as chances de que ele entenda – e atenda –  suas necessidades serão maiores. Você deve “recordar as palavras do próprio Senhor Jesus: Mais bem-aventurado é dar que receber” (At 20.35).

Finalmente, devemos liberar o perdão. Relembrar as decepções e remoer as ofensas não pode gerar nada de bom. O perdão é o martelo que esmigalha as correntes do ressentimento. É a tesoura que corta os laços que nos aprisionam ao passado. Nada é tão importante quanto perdoar. Jesus nos deixou o exemplo. Ele perdoou, na cruz, aos seus ofensores. Ali, ele nos ensinou que o perdão é sempre possível – que não apenas devemos perdoar, e sim que podemos perdoar. Isso é maravilhoso, porque o perdão beneficia, antes de tudo, a nós mesmos. O autor inspirado escreveu: “O que encobre a transgressão adquire amor, mas o que traz o assunto à baila separa os maiores amigos” (Pv 17.9). Temos de levar a sério essa admoestação.


ALCANÇANDO A CONVERGÊNCIA


Se evitarmos fazer julgamentos, buscarmos o diálogo, substituirmos o paradigma do “pedir” pelo do “ofertar” e, além de tudo, liberarmos o perdão, estaremos a caminho da convergência. A convergência não surge da ausência de desavenças, mas da superação destas. O que torna isso possível é o amor. Mais do que um sentimento, o amor é uma atitude e um compromisso. Ele viabiliza o convívio dos diferentes. Ele possibilita a harmonia dos divergentes.

Existe um outro ditado que diz: “Todos os rios correm para o mar”. Isso é uma verdade evidente. Mas você já parou para pensar na razão pela qual esse fenômeno ocorre? Por que todos os rios correm para o mar? Isso acontece por uma única razão: todos os rios correm para o mar porque o mar se colocou num nível mais baixo do que todos os rios. É por essa razão que os rios, apesar de serem tão diferentes, convergem, unânimes, para o mar. Isso nos leva a refletir: o que acontecerá se assumirmos, em nossos relacionamentos, uma postura humilde, buscando a conciliação e a paz? Certamente os nossos relacionamentos serão abençoados, e, das diferenças e desavenças, chegaremos à convergência.

Marcelo Rodrigues de Aguiar é casado com Rosi, e pai das gêmeas Amanda e Beatriz. Pastor da Igreja Batista em Mata da Praia, na cidade de Vitória, Espírito Santo. Atua também como psicólogo clínico, e tem várias obras publicadas sobre aconselhamento e cura interior.




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