A Aplicação Diária da Cruz – Sacrifício
T.A. Hegre
“Tornou o rei Davi a Ornã: Não; antes, pelo seu inteiro valor a quero comprar; porque não tomarei o que é teu para o Senhor, nem oferecerei holocausto que não me custe nada.” (1 Cr 21.24.)
“Quando Cristo chama uma pessoa para si, chama-a para vir e morrer” disse Dietrich Bonhoffer no seu livro The Cost of Discipleship (O preço do discipulado). Essas palavras de Bonhoffer, o qual selou seu testemunho com o próprio sangue (foi morto por Hitler) são pura verdade; e elas contêm a essência do discipulado cristão – “Vinde e morrei”.
Há três tipos de morte, ou, poderíamos dizer, três níveis de aplicação da cruz de Cristo. Cada um deles gera comunhão mais profunda com Deus e maior conformidade com a morte de Cristo. Em conseqüência disso, como Jesus prometeu, Deus dá a própria vida de Cristo aos homens numa irresistível torrente de graça, de modo que “do seu interior fluirão rios de água viva” (Jo 7.38).
Como mencionamos, o primeiro tipo de morte é a morte da velha vida, que se dá na crise inicial da justificação. “Se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2 Co 5.17). Assim, por amor de Cristo, o substituto, todos quantos se arrependem e crêem nele, são perdoados e nascidos do alto.
Depois vem o segundo tipo que é a morte do velho homem – isto é, da mente carnal, do “pecado que habita em mim” (Rm… 7.17), o princípio antagônico que atua nos que são justificados, mas não santificados. À medida que o Espírito Santo revela a vida do ego em todas as suas formas mais sutis, nós, os cristãos, descobrimos nosso profundo desequilíbrio e a escravidão de nossa natureza às coisas do mundo. Desejando e buscando uma libertação mais positiva desses problemas da vida interior, aprendemos que Cristo toma tanto o pecador como os seus pecados e os leva à cruz. Ocorre aí uma crise: daí em diante, a decisão final é tomada. Reconhecemos que, de fato, o nosso velho homem morreu – e nos consideramos mortos e vivos – mortos para todos os sórdidos negócios do ego, mas vivos para Deus e seu reino de amor. Então, em lugar da antiga amargura e ciúme (sem mencionar a tentação que nos ataca para maiores pecados), podemos começar a produzir as nove unidades do fruto do Espírito – amor, alegria, paz, etc. (Gl… 5.22).
Mas existe um terceiro tipo de morte – a morte do novo homem. Isso diz respeito não ao pecador ou a seu pecado, mas ao “novo” homem, isto é, à humanidade purificada e ao corpo físico. (Nisso se inclui a morte para o conforto, para a segurança e para evitar a dor a todo custo.) Para se manter a decisão tomada na crise da santificação, deve haver uma entrega diária do novo homem a Deus, para que o Senhor o possa plantar e fazê-lo frutificar. O apóstolo Paulo chama a isso o levar “sempre no corpo o morrer de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo” (2 Co 4.10).
A igreja primitiva conhecia esse morrer diário e, por isso, produziu genuínos discípulos, verdadeiros aprendizes de Cristo. Mas, por volta do ano 300 de nossa era, a presença do mundanismo se fez sentir dentro da igreja e ela começou a produzir cristãos só de nome. Quando os verdadeiros seguidores de Cristo falaram contra esse baixo nível de vida cristã, os líderes, que eram sábios o bastante para não negarem a existência dum nível superior, ofereceram aos que desejavam se entregar completamente a Deus, a oportunidade de se juntar a ordens monásticas, onde podiam ficar separados do mundo e viver só para Deus. Embora tais comunidades fossem fundadas por líderes sinceros, levados por uma motivação honesta, eles não resolveram o problema do viver cristão, mas meramente reconheceram dois níveis de vida cristã. Desde então, erroneamente, tem havido duas classes de cristãos.
Hoje em dia, todos admitem que a igreja, em sua grande maioria, não é aquilo que devia ser. Não obstante, há uma aceitação geral da idéia de que o discipulado, com sua exigência da cruz diária, é maravilhoso, mas desnecessário. Assim, o ser chamado de cristão em nossos dias não significa necessariamente tomar a cruz e seguir a Cristo. O vocábulo cristão, no seu uso comum, não é mais sinônimo de discípulo do Senhor Jesus Cristo. Existem aqueles que não são discípulos de Jesus e que também tomam para si o título de cristão. Mas o verdadeiro cristão precisa seguir o exemplo de Cristo no morrer diário. Há uma palavra do Credo Apostólico que resume toda a vida e ensinamentos de Jesus: “sofreu”. De igual modo, Jesus espera que nós, seus seguidores, não só experimentemos a alegria do perdão, da paz divina e certeza da vida eterna, mas o sigamos com uma vida de sacrifício. Tendo sido “tomados” pela cruz, temos de viver não só uma vida de sacrifício, mas entender também que esta é a única vida que satisfaz. O Espírito de Jesus, habitando em nosso íntimo, nos conduzirá pelo caminho do sofrimento e da cruz. E então, da cruz, fluirão bênçãos de vida e de salvação.
Essa vida envolve disciplina e controle do nosso corpo mediante o Espírito, bem como não se permitir que o corpo assuma a direção de nossa vida. Vejamos agora como esse corpo disciplinado deve ser usado sacrificialmente para o bem dos outros. O caminho do Cordeiro é a estrada do sacrifício. Mas, como deve ser o nosso sacrifício? Inicialmente, existem dois sacrifícios que podemos fazer: primeiro, dar sacrificialmente; segundo, viver sacrificialmente. Podemos sacrificar aquilo que temos e também aquilo que somos. Quando sacrificamos o que temos, a isso chamamos dar com sacrifício. Lembremos o episódio de Davi na eira de Ornã. Quando este, um submisso jebuseu, ofereceu a Davi bois para o sacrifício, bem como os instrumentos de debulha e os jugos dos bois para a lenha, Davi não aceitou sem pagamento, dizendo: “Não; antes, pelo seu inteiro valor a quero comprar; porque não… oferecerei holocausto que não me custe nada”. Assim, pois, dar sem sacrifício não é sacrifício. Para aprendermos o que é dar com sacrifício, precisamos estar preparados para pagar o preço.
A verdadeira vida cristã é vida de sacrifício. Não só somos chamados a sacrificar o que possuímos, as também o que somos.
No Novo Testamento encontramos três níveis de contribuição cristã. Primeiro, o dar proporcionalmente. O apóstolo Paulo nos fala de pormos a coleta de parte, conforme o grau em que Deus nos fez prosperar. (Ver 1 Coríntios 16.1,2.) Paulo não institui a quantidade, mas sem dúvida espera ao menos aquilo que se ordenara no Velho Testamento (dez por cento, mais os extras, perfazendo quinze por cento). O segundo nível de se dar é ilustrado na vida de Zaqueu que, quando foi salvo, deu metade do que possuía. (A restituição quadruplicada talvez lhe tomasse o restante.) Mas, há ainda um terceiro nível, mais profundo. Vemo-lo no caso da viúva que quase nada possuía, mas deu tudo que tinha. Isso agradou tanto a Jesus que ele chamou a atenção dos seus discípulos para o ato da viúva. Hoje, Deus está buscando pessoas que queiram dar sacrificialmente. Mas, não pensemos, de modo algum, que estamos dando muito.
A verdadeira vida cristã é vida de sacrifício. Não só somos chamados a sacrificar o que possuímos, mas também o que somos. Isso custa mais do que dinheiro. Custa o nosso tempo, esforço, conforto e segurança. Precisamos aprender a viver dessa maneira a ponto de não mais procurar poupar-nos, mas desejar ser quebrantados, para que o Cristo que trazemos em nosso íntimo seja revelado. Há inúmeras maneiras de darmos a nós mesmos. Viver sacrificialmente não é apenas partilhar nossas economias, mas, como diz o profeta Isaías, abrir nossa alma ao faminto e fartar a alma aflita (ver Isaías 58.10).
Foi assim que o apóstolo Paulo viveu. Eis o que ele disse: “Dia após dia, morro!” (1Co 15.31.) Como dissemos antes, o contexto é muito claro e mostra que Paulo se referia não à morte para o pecado, mas à morte física, a uma disposição diária de arriscar sua vida. O versículo anterior diz: “Nós nos expomos a perigos a toda hora”. E o seguinte diz: “Como homem, lutei em Éfeso com feras”. Seria necessário um grande poder de imaginação e a mais alta liberdade em exegese para se aplicar esta frase – “Dia após dia, morro” – à morte para o pecado. Aqui não se faz referência alguma ao pecado, e sim à disposição que o apóstolo Paulo sentia de sacrificar sua vida para que outros pudessem viver. Alguém disse: “Vi, certa vez, pontilhando a neve, o rasto sangrento de uma lebre ferida”. Isto descreve a vida do apóstolo Paulo – “em perigos de morte, muitas vezes”. Por onde quer que fosse, Paulo deixava seu sangue. Jamais tentou poupar-se, mas, dia a dia, ele literalmente se sacrificava.
Em primeiro lugar, é necessário sermos purificados e santificados, para que a nossa vida tenha a qualidade apropriada.
Sim, amigos, quando formos “tomados” pela cruz, também buscaremos viver uma vida sacrificial, por amor a Cristo. A experiência da santificação, que inclui a purificação do pecado dominante e o enchimento do Espírito Santo, apenas dá qualidade à nossa vida, de maneira que a possamos apresentar a Deus como um sacrifício vivo. A crise decisiva da santificação não é um substituto para a vida sacrificial. Aqueles que já foram purificados, santificados e tornados aceitáveis, são chamados, pelas misericórdias de Deus, a apresentar-se como um sacrifício vivo. A crise da santificação não é o fim, mas apenas um meio para se alcançar um fim na vida cristã. Deus nos salva e também nos santifica para que nossa vida tenha a qualidade apropriada para produzir bom fruto. Jesus disse a mesma coisa, embora de modo bem diferente: “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto” (Jo 12.24). Plantamos boa semente, purificada, semente com vida em si. E não é ela plantada para purificação, mas para produção. Em primeiro lugar, é necessário sermos purificados e santificados, para que nossa vida tenha a qualidade apropriada. Entretanto, não devemos parar aí, mas, sim, permitir que sejamos plantados, através de uma experiência mais profunda de morte, de modo que produzamos frutos.
O grande soldado da cruz, Willis Hotchkiss, falava certa vez de sua vida passada na República do Quênia, África Oriental. Naqueles dias de obra missionária pioneira (por volta de 1895), os missionários tinham de viver e se alimentar como os africanos, comendo até formigas, porque não podiam levar consigo grande equipamento e nenhuma comida especial. Disse então que, certa época, passou dois meses e meio comendo só feijão e leite azedo. Doutra vez, teve de passar semanas sem a mais comum de todas as necessidades – o sal. Contou também do medo que tinha dos ataques dos leões devoradores de gente. Os missionários sofriam ainda outras privações. Depois de dar vasto relatório sobre os perigos de vida naquela região e de falar de quantos perderam a vida ali, e de quanto era custoso trabalhar e viver naquele lugar, concluiu dizendo: “Mas nem me fale em sacrifício. Não é sacrifício. À luz do gozo supremo dessa gloriosa experiência de fazer ecoar esta milagrosa palavra – Salvador – pela primeira vez, diante de uma tribo que jamais a ouvira antes, não posso pensar nesses quarenta anos de missão em termos de sacrifício. Vi Cristo e sua cruz, e fiz tudo isso porque o amo”.
“Gosta do seu trabalho?” – perguntou alguém a um outro missionário que servia a Cristo na África. A resposta foi: “Gostar deste trabalho? Não; minha esposa e eu não gostamos de sujeira. Temos uma sensibilidade bastante refinada. Não gostamos nada de nos arrastar dentro de vis cabanas, pisando excrementos de cabra. Não gostamos da companhia de gente ignorante, suja e abrutalhada. Mas, deixará uma pessoa de fazer algo por Cristo, só porque isso a desagrada? Que Deus tenha dó de uma pessoa assim. Se isto nos agrada ou nos desagrada, não importa. Temos ordem de ir, e por isso vamos. O amor nos constrange”. Eis o poder de atração da cruz.
Quando a mensagem evangélica de nossos dias omite a cruz, não tem a menor chance de que suas reivindicações sejam levadas a sério.
Pregamos sobre o sangue e o mencionamos insistentemente, quase que em cada parágrafo, mas não vivemos esse sangue. Necessitamos da aplicação prática do sangue, como diz o autor da carta aos Hebreus (Hb 12.4): “Na vossa luta contra o pecado, ainda não tendes resistido até ao sangue”.
Experimentaremos o maior avivamento que o mundo já teve, se os cristãos voltarem ao cristianismo bíblico.
O cristianismo nem sempre se tem mostrado tão fraco e a cruz tão ausente como em nossos dias! Os primeiros pregadores metodistas sabiam o que significava consumir-se por Deus. A média de vida deles, nos primeiros cinqüenta anos depois da morte de Wesley, era de apenas trinta e dois anos! Samuel Rutherford disse: “É loucura pensar em entrar no céu com a pele em perfeito estado”. Lutero dizia: “Deus põe a sua marca em todos quantos o obedecem”. Nenhuma árvore produz fruto para seu próprio uso e jamais se alimenta de seu próprio produto. O sol não brilha para esquentar-se a si mesmo. Na vontade e plano de Deus, tudo dá de si mesmo. Somente Satanás e as pessoas sob sua influência buscam seus próprios interesses. Todos quantos “só buscam o que é seu” se fecham para o encher e esvaziar-se do amor divino.
O pioneiro soldado de Cristo, C. T. Studd, conheceu o poder que provém da crucificação do ego. Já quase às portas do céu, aconselharam-no a retirar-se do ministério ativo e aposentar-se. Nessa ocasião, um amigo lhe escreveu, dizendo-lhe na linguagem do seu antigo esporte favorito – o críquete: “Você já disputou uma excelente partida. Agora é tempo de retirar-se e passar a pá às mãos de um jovem. Depois, fica por minha conta providenciar para que você passe seus derradeiros dias em relativo conforto”. Depois de agradecer ao amigo com a maior sinceridade, Studd acrescentou em sua resposta: “Sou o comandante de um pequeno exército. O inimigo nos ataca pelo flanco direito, pelo esquerdo e pela frente. Nossas mãos acham-se presas a nossas espadas. Darei eu as costas ao inimigo e deixarei meu pequeno exército lutar sozinho?! Nunca! Quero morrer com a espada na mão”. E assim aconteceu. A propósito, dez mil cristãos, que não passavam de pagãos incultos quando C. T. Studd iniciara seu trabalho entre eles, dezesseis anos antes, tomaram parte no culto em memória dele, um ano após sua morte.
Devemos pregar a Cristo e o supremo chamado que ele faz para uma aplicação mais ampla e mais profunda da cruz, de tal modo que o crente possa ser libertado do poder do pecado, de Satanás, do mundo e da carne. Somos enviados a fazer cristãos não só de nome, e sim, discípulos. Hoje temos a oportunidade de um grande avivamento. Experimentaremos o maior avivamento que o mundo já teve, se os cristãos voltarem ao cristianismo bíblico, cristocêntrico, e ao cristianismo da cruz.
Será errado pensar que nosso Senhor espera de nós que deixemos tudo, tomemos nossa cruz e o sigamos?! Um olhar para o Calvário, para a cabeça de Cristo coroada de espinhos, para o seu rosto desfigurado, para suas mãos feridas, seus pés tintos de sangue, seu lado varado pela lança, seu corpo flagelado, lacerado, chagado, e seu coração esmagado pelo pecado, des
pertará em nós esse inexplicável amor por ele, e daí aceitaremos alegremente a comunhão dos seus sofrimentos.
Wilbur Chapman olhou um dia para o rosto enrugado do General Booth e perguntou-lhe: “Qual é o segredo do seu poder e sucesso?” O rosto de Booth encheu-se de lágrimas, que lhe rolaram pelo queixo. E, afastando para trás o cabelo de sua testa sulcada por muitos anos de batalhas, provações e vitórias, disse: “Eu lhe contarei o segredo: Deus teve de mim tudo que ele quis. Existem pessoas com oportunidades maiores, mas, desde o dia em que tive a visão daquilo que Jesus Cristo podia fazer, dei-lhe tudo”.
Este é o espírito de que tanto precisamos hoje em dia.
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O Pr. Ted. A. Hegre é o fundador da Missão Evangélica Betânia. Foi chamado para estar com o Senhor em 1984.
1 comentário
Cristiane
maravilhoso e muito edificante